O vão entre o trem e a estação.

21/04/2012 Gritos do Nada

Vi rostos conhecidos no trem, em pessoas que na verdade nunca vi…

Tudo muito igual à ontem, antes de ontem e com certeza amanhã. Tá calor, é o que penso quando a senhora sentada passa o lenço sobre a testa.
Eu olho para as pessoas e não vejo nenhuma pessoa, vejo dezenas de rostos, e não vejo nenhum, parece tudo uma coisa só, sem forma… Mas os olhos, voltados pro chão, estão lá, assim como as bocas, os narizes, cabelos, ouvidos e seus fones… Por que não vejo ninguém?

Não vou estar aqui amanhã. Alguém perceberá? Tenho certeza que sou mais um desses rostos conhecidos em pessoas que ninguém nunca viu, talvez percebam que tem mais espaço no trem, não farei falta, não aqui no monótono e doente balanço desse trem. Onde farei falta?

Não ouço conversas, ouço múrmuros, algo sobre o calor, sobre a chuva, sobre o trabalho… Dá pra ouvir baixinho o som que sai do fone da menina a minha frente, que com os olhos fechados parece conseguir o que todos aqui querem: fingir estar longe… 

Anoto tudo, os pensamentos, as frases escritas nas paredes, e tava lá no caderninho: “O mundo já morreu, e é esse o cheiro dele apodrecendo.” Como ainda posso dormir?

A menina que tava ouvindo música desceu, entraram mais pessoas, quantas histórias a gente perde por não puxar papo? Será que a história dessas pessoas é tão desbotada quanto suas aparências? Caramba… Ainda tem duas estações pra chegar.

Alguém atende o celular, fala alto, parece que quer que saibamos todos o que está acontecendo, que ela está brigando com o namorado… E todos, mesmo que não aparentem, estão prestando atenção, até a conversa sem graça de uma desconhecida parece ser melhor que esta realidade triste que margeia a linha do trem, junto com os barracões abandonados e o mato que cresce…

[quote_left]Eu olho para as pessoas e não vejo nenhuma pessoa, vejo dezenas de rostos, e não vejo nenhum, parece tudo uma coisa só, sem forma… [/quote_left]Não tem nem mesmo mais os tiozinhos que vendem chocolate, bala, caneta, manual do Excel, revista de palavras cruzadas, parece que foi proibido… Eles querem silêncio nos vagões eu acho, ou não querem que mais ninguém, além deles, ganhe dinheiro a custa da nossa falta de opção. Trem, metrô e busão…

A voz feminina diz o nome da estação que desço, e pede pra eu ter cuidado pra não cair no vão entre o trem e a estação, é tudo tão metal frio por aqui, que esboço um sorriso de pensar que aquela gravação esta preocupada com a gente cair e se machucar, porque sabemos que as pessoas, muitas delas, continuarão caminhando, pularam por cima de quem cair e não terá coragem de olhar pra trás, nossas vidas e trabalhos são de fato mais importantes que um descuidado que caiu no chão, mesmo depois da voz pedir cuidado…

“O mundo já morreu, e é esse o cheiro dele apodrecendo.”

Alguém que se perde facilmente entre cerveja, noites, amores, sexo, shows, músicas, letras, palavras, motos, asfalto, montanhas, amigos e nunca acha que é muito o muito pouco que viveu!

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Últimas Postagens

13/11/2024 Gritos do Nada

Vilão?

todo mundo é vilão na história de alguém o foda é ser vilão na própria história também a faca rasga o braço e o que sai é sangue ou sofrimento?eles nem olham no seu olho, mas rápido dizem “eu lamento”lamento o que, diz aí? lamenta pelo que eu fiz ou pelo que sofrilamenta pelo que […]

Leia mais…

09/11/2024 Gritos do Nada

Os gritos que não dei

Seguro o choro segura o choro!Que agora é hora de sorrir! finge um sorriso pro insta!segura essa lágrima que quer cair!! todo mundo te pergunta se você tá bem, mas ninguém quer a resposta!Cada um fechadinho no seu mundinho de bosta!abre a janela, tira o olho do celular! Pega o sol, a vida bela, se […]

Leia mais…

19/01/2024 Sonhos Viciados

Reza em hospital

Tento lembrar se existia paz quando minha única morada eram as ruas líquidas do ventre da minha mãe. Reza em hospital. Peço a Deus ao menos os grunhidos das crianças lá fora.  Mergulho no meu mais triste silêncio. Os doutores, os relatórios, os sinais perversos dos desastres naturais que nos arrebatem. Eu rezo, quem sabe […]

Leia mais…

24/12/2022 Gritos do Nada

Jogadas ao vento

As paredes não enxergam Mas dizem que tem ouvidos Beliscam azulejos, beijam cotovelos Os loucos fazem o impossível Deita sobre a relva o amor Que se desfaz em orvalho na grama Só entende quem ama! Mas tudo está por dizer Nada NUNCA foi feito E sem feito nada será Cubro o rosto com a capa […]

Leia mais…

22/12/2022 Coletivo

Ruas, pessoas e perdidos

Rua, pessoas e movimentos estreitosOlho pra fora, o mundo já não é o mesmo Prende a respiração, segura o choroOlho pra dentro, vazio e desespero. No chão bitucas de sorrisosNo céu o canto triste das estrelas Tudo é meio, nada é fimOs mesmos erros que não canso de repetir Toda noite eles cantam pra mimAmanhã, […]

Leia mais…

26/08/2020 Sonhos Viciados
O que será que leva dentro? O suor triste do operário?

Uma piñata feita com uma mochila Rappi

Artista



Acervo público Metropolitan Museum of Arts, créditos: