Última Carta

23/12/2011 Gritos do Nada

O meu prazer é loucamente aguçado, são tão tentadoras suas formas de se expressar

Lia e relia a porra da frase, e mal podia entender como uma carta que começa com uma frase como essa poderia ser uma carta despedida.

Ele chegou em casa como em todos os dias, ainda chateado com a briga que teve com ela pela manhã, pois disse, no calor da discussão, que voltaria pra casa apenas pra pegar suas coisas e ir embora.

[quote_left]Ele sorri, aqueles sorrisos tristes de saudade[/quote_left]Porém durante o dia acalmou-se, chegava em casa agora para pedir desculpas, e foi uma carta de despedida o que encontrou sobre a TV. Ela dizia no fim que nunca mais voltaria a seus braços…

Ainda olha em volta, vendo cada pedaço da casa e da mobília onde deveria estar alguma coisa dela. Olha pra estante empoeirada e dá falta das fotos, do bibelô de extremo mal gosto que ele insistiu tanto em deixar ali, na sala, pra todos verem. Levanta-se da poltrona, toca o lugar da mesa de canto onde ficava uma bonequinha de porcelana que ela tanto gostava… caminha pela casa…

Na cozinha não tem mais a panela elétrica, a cafeteira de 20 reais e nem um conjunto de copos que ela nunca usava mais deixava a mostra. A cozinha está morta, ele pensa, imaginando ela abrindo a geladeira e “assistindo” seu conteúdo até ele próprio gritar para ela fechar a porta. Ele sorri, aqueles sorrisos tristes de saudade, fecha os olhos e continua seu tour.

Passa direto pela porta do quarto, não tem coragem de abrir a porta e não ver as coisas dela por lá…

No banheiro dá falta da balança, a droga da balança de onde ela todo dia reclamava de uns quilos a mais, ou de onde comemorava algumas gramas a menos. Lembra que nunca subia nela quando Érica estava por perto.

Recorda da cumplicidade de dividir um banheiro, de tomar banho enquanto ela escovava os dentes. Ele enfim deixa as lágrimas escaparem.

Limpa o rosto com a manga da camisa branca e, como já começou a chorar mesmo, resolve que é hora de entrar no quarto. Antes de abrir a porta ouve o celular dela tocar dentro do quarto, imagina que ela está lá dentro, que, arrependida da carta, tenha se trancado no quarto.

Abre a porta com lentidão, ainda ouve o celular tocando.

Vê as coisas dela espalhadas pelo chão, o bibelô jogado perto da escrivaninha, porta-retratos entre suas pernas na cama, ela parece dormir, enquanto o celular toca…

Ele vê, perto dos copos e da bonequinha, uma lâmina, o sangue parece já estar seco.[quote_right]Ela dizia no fim que nunca mais voltaria a seus braços…[/quote_right]

Só agora ele olha pra ela, ela parece dormir, os dois braços embaixo da cabeça, o travesseiro antes branco agora é todo vermelho, ele vê pelo rosto dela as marcas das lágrimas que escorreram pelo seu rosto.

Levanta seu rosto e num misto de tristeza e horror encara seus pulsos brancos cortados, agora já sem sangue algum pra escorrer.

A solta com pressa, como se só agora se dessa conta de que, dessa vez, é tarde demais pra pedir perdão por ser babaca.

Deixa mais uma lágrimas escorrerem, antes de procurar a pistola guardada na escrivaninha…

Alguém que se perde facilmente entre cerveja, noites, amores, sexo, shows, músicas, letras, palavras, motos, asfalto, montanhas, amigos e nunca acha que é muito o muito pouco que viveu!

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